31.7.09

A exploração das fontes e os detalhes quase subliminares

Essa tirinha é de 2007, e tinha sido publicada quadro a quadro no flog do Tupi, onde eu apenas havia mencionado a existência de alguns detalhes e recursos de linguagem, sem identificá-los, com a promessa de comentar detalhadamente em outro post... que é esse, dois anos depois... rs.

Bom, a primeira coisa que podemos observar no texto é uma mudança nas fontes, logo no primeiro balão. Bem característico dos quadrinhos e da publicidade, esse é um recurso mais visual do que textual. A Poty lê, ou finge que está lendo, e o texto que estaria no jornal é apresentado em fonte arial, tipográfica e comum a jornais impressos, ainda que, na cena, o que o texto representa imediatamente é a fala, e não a escrita.

Outro detalhe importante neste primeiro balão é a grafia: é claro que “ex-bítou Djôm Lênom” é uma representação incorreta, porém mais próxima da pronúncia de acordo com a fonética da língua portuguesa. Nos quadrinhos atuais a Potiquitã está no início de sua fase de alfabetização, como fica claro na sequência da tira, e assim ela não está de fato lendo; então eu representei as palavras como ela imagina que seriam escritas ou, simplesmente, como ela as pronuncia, pois não existe pra ela, ainda, a representação escrita e da língua inglesa, tão diversa da nossa na associação com os sons. Se ela estivesse lendo, provavelmente pronunciaria literalmente be-a-tle ao invés de beatle=‘bítou’. Da mesma forma, ela fala “o óculos”, como já é comum na nossa linguagem coloquial. Se estivesse lendo, ela diria evidentemente como estaria escrito no jornal: “os óculos”. No entanto, aqui cabe uma observação sobre certas liberdades que a língua escrita vem ganhando em função da língua falada, e a perda do plural na identificação pelo artigo na palavra óculos já é aceita (o óculos); bem como na palavra calças, que nesse caso perde também o seu ‘s’ final (as calças > a calça). Falaremos noutro post sobre essas “liberdades”, que não trazem nenhum prejuízo estético quando bem utilizadas, especialmente em crônicas e na ficção.

Voltando à questão dos recursos visuais aplicados ao texto, pulemos pro último quadrinho, onde o adjetivo composto “estraga-prazeres” aparece inflado, ocupando quase todo o balão pra mostrar que ela está se expressando com veemência. Esse é um dos mais comuns recursos das histórias em quadrinhos, que nesses casos, bem como nas onomatopéias tipo “soc!”, “crás”, “bum!”, sempre tinham as suas letras desenhadas à mão. Atualmente é possível aplicar distorções e diversos outros efeitos visuais sobre qualquer uma das centenas de fontes disponíveis, através dos programas mais utilizados pelos desenhistas como o adobe photoshop!

Mas uma das coisas que eu mais gosto nessa tira está ainda no primeiro quadrinho, e relaciona-se com o contexto cultural/jornalístico no momento em que a produzi. Naqueles dias, além da bizarra venda em leilão dos óculos de John pela cifra de seis milhões de dólares, estavam nos jornais também as notícias sobre as mortes dos geniais cineastas europeus Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, e tais referências aparecem, pequenininhas, no verso do “Jornal de papel” nas mãos da Poty. Só que na impressão ou na publicação em baixa resolução, na web, esses detalhes podem não aparecer, e nesse caso as referências perderiam sua objetividade, mantendo talvez, uma uma idéia vaga, subjetiva ou, como diria o Calazans, subliminar, uma "homenagem subliminar", diferente das mensagens subliminares agressivamante comerciais ou ideológicas presentes na mídia. O termo “jornal de papel” é uma sutil ironia, uma vez que hoje as notícias são veiculadas mais amplamente pela TV e internet, e a idéia do jornal impresso torna-se cada vez mais uma referência romântica, quase do passado. Outra sutil ironia está na manchete em letras maiúsculas: “O ÓCULOS DE SEIS MILHÕES DE DÓLARES”; mas apenas quem tem mais de 35 anos lembrará com certeza da série de TV protagonizada por Lee Major interpretando um ciborg, nos anos 70, intitulada “O homem de seis milhões de dólares”. Dizem que essas coisas, como as referências a nomes, jargões ou objetos de famosas séries de TV, ficam no imaginário popular mesmo em um nível subconsciente ou subliminar, e isso poderia explicar, por exemplo, o absurdo sucesso do telefone celular flip, modelo que simplesmente imita o comunicador da tripulação da nave Enterprise na maior série de fc da televisão... mas este foi criado nos anos 60, é referência de outras gerações... Quantas pessoas sabem ou lembram disso conscientemente?!

Bom, seja como for, detalhes curiosos sempre enriquecem uma história, mesmo que ela tenha só três quadrinhos! A tirinha que desmontei aqui tem um final clássico, muito comum em HQs curtas e desenhos animados, e isso também é um recurso próprio e sempre atual dessas linguagens. Não sei se em função dos detalhes, do final clássico ou, provavelmente, da reunião de ambos os recursos, essa tira representou um dos maiores sucessos de crítica no flog do Tupinanquim, como comprova até mesmo o número de comentários na postagem original do último quadrinho.

Nas próximas postagens falaremos da liberdade consciente e das “licenças poéticas” nos diálogos, da reforma ortográfica e, é claro, dos palavrões, censura e públicos (des)afinados, temas atualíssimos e importantes depois das polêmicas com alguns livros de quadrinhos e de contos na área da educação. E aguardem, para os próximos dias, uma nova HQ do Tupinanquim, de três páginas, com outro tema talvez ainda mais urgente: a gripe!

Um comentário:

  1. Willer12:35 AM

    Rapaz... muito didático seu post. Ajuda muito aspirantes a desenhista, como eu.
    Até.

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